Por João Meirelles Filho
A humanidade observa atônita o desaparecimento das abelhas e de seus serviços ambientais. Segundo Gould, entre 1947 e 2005, nos o declínio das colônias de abelhas domesticadas foi de 60% nos Estados Unidos. No Brasil, o fenômeno é recente e comprovado nos Estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo.
O colapso global associa-se ao uso intensivo de produtos químicos e a alterações em ambientes naturais. Para Gallai e colegas, se esta perda continuar, frutas, vegetais e estimulantes (como o café) não serão capazes de atender às demandas. Para Aizen & Harder, nos últimos 50 anos, a agricultura global que depende da polinização de animais aumentou em 300%, e a maior parte da comida do planeta hoje depende de polinizadores. Globalmente, conforme recordam Gallai e colegas, o valor econômico dos polinizadores é estimado em 1/10 do valor da agricultura (US$ 153,1 bilhões/ano), e as abelhas estão entre seus principais agentes.
As abelhas aumentam a quantidade e a qualidade dos frutos, agrega-lhes mais valor, sabor, doçura e forma mais atraente. Mesmo plantas que não dependem dessa ação, como a soja, ganham mais peso em seu grão se mais bem polinizadas. A Organização das Nações Unidas criou a Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ambientais (IPBES) para monitorar perdas de biodiversidade, incluindo polinizadores e produção de alimentos. O IPBES demonstrou a importância de abelhas silvestres na estratégia de produção de alimentos e enfrentamento da mudança climática, com atenção à agricultura familiar.
Biodiversidade
São estimadas 25 mil espécies de abelhas no planeta. No Brasil, há milhares de espécies. O destaque é para o gênero Melipona, as abelhas sem ferrão. Diferentemente das abelhas do gênero Apis, introduzidas no Brasil em 1838, animal exótico e perigoso (sua picada pode matar), as Meliponas não apresentam risco e, após milhões de anos de evolução, estão mais bem adaptadas ao meio. Das 600 espécies desse gênero no mundo, há 244 no Brasil, e 89 aguardam descrição científica. Na Amazônia, há 114 espécies, número que pode crescer. E não há sequer inventário de espécies por Estado, o que, para Vera Imperatriz-Fonseca, pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale (ITVS) seria de grande relevância. As abelhas sem ferrão são conhecidas por uruçu, jataí, mandaçaia etc. e representam imenso e pouco conhecido patrimônio brasileiro.
Conservação
Se considerada apenas a floresta amazônica, como concluiu Warwick Kerr em estudos no Tapajós, de 35% a 90% das árvores dependem de abelhas como polinizadores primários. Uma floresta conservada tem dezenas de espécies, em pastagem degradada dificilmente acham-se mais que duas.
Restauração florestal
Em 2015, na Conferência do Clima da ONU em Paris, o Brasil se comprometeu a restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030 para reduzir em 43% suas emissões. Esta meta espetacular só será alcançada se considerado o manejo de melíponas. As abelhas aumentam a polinização, a produção de frutos e a dispersão de sementes, além de combater o desmatamento e o fogo (um dos maiores problemas da restauração).
Mais produção
Alguns dos produtos do Brasil e da Amazônia, como açaí, castanha, cacau, pimentas e frutas, dependem das abelhas sem ferrão para polinização. No caso do açaí, as melíponas estão entre principais polinizadores. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Peabiru iniciaram pesquisas para saber se a criação de melíponas nos açaizais aumenta a produção. Esta é uma informação importante, afirma Antônio Cordeiro de Santa, da Universidade Federal Rural da Amazônia, pois o açaí se tornou cadeia de valor que movimenta mais de R$ 4 bilhões/ano, e principal fonte de renda de muitas comunidades da Amazônia.
Mel valioso
Apesar de explorado por índios, foi sempre escasso e é valorizado pela medicina tradicional. A demanda crescente é puxada pelo mercado gourmet. Com milhares de pequenos criadores, seu valor é pelo menos 3 vezes mais alto que o produto da Apis, inclusive porque uma colmeia produz pouco mais de 1 quilograma mel/ano (na Apis, são de 10 a 20 quilogramas).
Meliponicultura
Somente agora, após 50 anos desde sua definição científica, a criação racional de abelhas sem ferrão – a meliponicultura – começa a adquirir escala. Entre os difusores da meliponicultura na Amazônia estão Embrapa, Universidade Federal do Maranhão e ONGs (Instituto Socioambiental, Fundação Amazonas Sustentável e Peabiru). A capacitação de agricultores familiares e a simplificação do licenciamento do manejo de abelhas nativas permitiram o surgimento de iniciativas como o projeto Néctar da Amazônia, do Instituto Peabiru, financiado pelo Fundo Amazônia (gerido pelo BNDES), envolvendo mais de 100 produtores e 5 mil colmeias de 5 municípios no Amapá e Pará, legalizadas no Sistema Nacional de Gestão de Fauna Silvestre (Sisfauna) e alcançando o mercado com Selo de Inspeção Federal (SIF).
Renda local
Para 1 milhão de agricultores familiares da Amazônia, 30 colmeias podem gerar R$ 600/ano, equivalente à renda de mais de um mês. Melhora também a segurança alimentar da família com mais frutos e mel na mesa. Se o controle do dinheiro estiver com a mulher, seu impacto é ainda maior. Tem potencial, inclusive, de desestimular a juventude a migrar em busca de trabalho. Mais que fonte de renda, para Vera Imperatriz-Fonseca, a meliponicultura deveria ser atividade rural com outra qualquer outra, pois são animais silvestres que fazem parte do dia a dia do agricultor.
Sociobiodiversidade
As melíponas são generalistas na busca de néctar e pólen, ou seja, coletam o néctar e pólen de diversas plantas. Seu mel contém a essência de toda uma floresta em uma colher. O consumidor adquire mais que um adoçante com sabores diversificados e características físico-químicas peculiares. É poderoso aliado da conservação da biodiversidade e da restauração florestal para manter a floresta em pé. É produto da sociodiversidade brasileira – indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, gerando renda em seu território.
Desafio
Se encontrarmos mecanismos de remunerar os serviços ambientais das abelhas sem ferrão, além do mel e das colmeias a outros produtores, revolucionaremos a restauração florestal, o combate a queimadas e desmatamentos, e por consequência o enfrentamento da mudança climática, gerando uma revolução rural.
João Meirelles Filho é diretor do Instituto Peabiru, escritor e empreendedor social. Trabalha com abelhas nativas há 12 anos.
O Instituto Peabiru vem desenvolvendo trabalho pioneiro com meliponicultura há mais uma década a fim de fortalecer a cadeia de valor do mel de abelhas sem ferrão em comunidades tradicionais da Amazônia. Saiba mais sobre o projeto Néctar da Amazônia.
Artigo originalmente publicado na Revista Página 22, da FGV.
Crédito das imagens: Instituto Peabiru