Você já ouviu falar em ciência cidadã? Imagina como essa perspectiva da pesquisa científica pode auxiliar no enfrentamento da pandemia do coronavírus? Essas e outras questões sobre a abordagem que reposiciona o cidadão no processo de produção da ciência foram tema de um bate-papo publicado no portal Agenda Arte e Cultura, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com a professora titular do Instituto de Biologia da UFBA, Blandina Felipe Viana.
Formada em Ciências Biológicas e Engenharia Agrônoma, Blandina Viana tem mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e estágio pós-doutoral na University of Guelph, Canadá. A pesquisadora é também colaboradora frequente da A.B.E.L.H.A.
A sólida carreira acadêmica, o amor pela pesquisa e o olhar atento e amplo ao social garantiram uma conversa conduzida pela jornalista Claudiane Carvalho, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e pós-doutorado pelo CNPq/UFBA. O bate-papo, que transitou pela história da ciência para nos mostrar onde está a “chave” dos problemas que nos afligem nos dias atuais e outros que podem vir, é reproduzido aqui.
Nos séculos XVI e XVII, os cientistas apresentavam seus experimentos em espaços públicos, a fim de explicar o método científico. Na época, a construção do saber pela sciencia era desconhecida do grande público. Em que medida a ciência cidadã retoma essa expectativa de aproximação e compromisso mútuo?
Blandina Viana (BV) – Creio que essa aproximação da ciência com a sociedade se dava de forma unidirecional, sem a real participação do público. Na maior parte da história, a ciência foi praticada por cientistas não-profissionais, pessoas que exerciam a ciência como hobby e que pertenciam, em sua maioria, à elite econômica e intelectual. A profissionalização da ciência é muito recente, a formação de cientistas treinados para exercerem essa função só aconteceu em meados do século XIX. Hoje, o que muda com a ciência cidadã é a democratização do acesso à ciência proporcionado, principalmente, pelos avanços tecnológicos e pelos meios de comunicação digitais. Assim, qualquer cidadão, hoje, pode engajar-se em um projeto de ciência cidadã ou mesmo propor um novo projeto pra desenvolver em colaboração com cientistas.
Em linhas gerais, como pode ser definida a ciência cidadã?
BV – Em linhas gerais, pode ser definida como uma abordagem de pesquisa participativa que envolve voluntários não acadêmicos em investigações científicas.
Essa abordagem parece alinhada às demandas de uma sociedade que redefine o papel do chamado “receptor”, o qual, cada vez mais, conclama o seu lugar de partícipe nos processos de produção. A ciência cidadã também é um reposicionamento do “receptor”, ou seja, do cidadão?
BV – Certamente que sim. É nesse ponto que a Ciência Cidadã difere de projetos de pesquisa nos quais os cidadãos são, exclusivamente, objetos de estudo. Para esta modalidade de pesquisa os participantes são voluntários e coletam dados, participam das análises, das publicações, ou ainda, da definição da pergunta de pesquisa e levantamento de hipóteses. A Ciência Cidadã constitui-se também em potencial ferramenta para educação ambiental e científica dos cidadãos, para desenvolvimento da cidadania e para subsidiar tomada de decisão.
Estamos vivenciando uma conjuntura social muito conturbada. Nesse cenário, ecoa nas redes sociais que a crise social, política e econômica acarretada pelo coronavírus teve um lado positivo: alertar a sociedade para a necessidade e importância da ciência? Concorda com essa visão?
BV – Se podemos tirar algo de positivo dessa crise, é a certeza de que a ciência é a resposta que precisamos para resolver esse e outros problemas que ainda estão por vir, e que afligem [e vão afligir] a nossa sociedade.
Como a ciência cidadã pode ajudar a sociedade a enfrentar esse momento de pandemia?
BV – A ciência cidadã oferece uma oportunidade única para o engajamento do público com a ciência durante esse período de isolamento social. Usando as tecnologias digitais, diversas ideias podem ser colocadas em prática. Por exemplo, os cidadãos que testaram positivo poderiam ajudar a combater o coronavírus, compartilhando com cientistas e sociedade informações sobre os sintomas da doença, tratamento e tempo de recuperação, alimentando uma base de dados que poderia ajudar bastante os pesquisadores e médicos no diagnóstico da doença. Em outras áreas do conhecimento, tais como astronomia, engenharia, ecologia e meio ambiente, os cidadãos poderiam colaborar, usando guias on-line na interpretação de fotos tiradas com câmeras digitais, na transcrição de dados em plataformas digitais, etc. ou usando aplicativos de celulares na observação de fenômenos através das suas janelas. As escolas também poderiam fazer uso dessa abordagem como ferramenta de ensino e aprendizagem com as crianças que estão em homescholling. Nesse momento, há um grande número de projetos de ciência cidadã sendo conduzidos na Europa, Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. No Brasil, essa prática ainda é pouco conhecida e o número de projetos em curso no país é incipiente.
A fala da senhora faz referência ao fenômeno da midiatização da sociedade e da cultura, ou seja, uma ambiência dos meios de comunicação que redefine práticas, relações e discursos sociais. A possibilidade de produção, circulação e recepção do saber científico pelas mídias facilita o trabalho da ciência cidadã?
BV – Sim. A mídia é uma grande aliada no engajamento do público com a ciência, criando oportunidades para o desenvolvimento de estratégias de comunicação e divulgação pública do conhecimento científico.
A senhora é uma das coordenadoras do INCT em Estudos Inter e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (IN-TREE) que reúne, em média, 250 pesquisadores de diferentes universidades. Que pesquisas desenvolvidas nesse instituto podem ser compreendidas como ciência cidadã?
BV – A ciência cidadã é uma das linhas de investigação do INCT IN-TREE e todos os projetos temáticos (PTs), vinculados ao instituto, têm potencial para o desenvolvimento de pesquisas usando essa abordagem. Alguns projetos, visando ao engajamento com diferentes setores da sociedade ou do público em geral na área ambiental, já foram propostos. Um desses projetos, já consolidado, é o “Guardiões da Chapada” que pretende criar, de maneira colaborativa, um banco de imagens dos visitantes florais e da flora associada no Território da Chapada Diamantina.
A coleta de informações sobre os potenciais polinizadores das plantas, cultivadas e silvestres, ocorre por meio de registros fotográficos desses animais nas flores, em ambientes naturais, urbanos e agrícolas. As fotos são enviadas pelos voluntários para um sistema que irá alimentar um banco de dados. Com esses dados, será possível desenvolver modelos computacionais para prever o efeito das mudanças ambientais sobre as espécies; desenvolver diretrizes para manejo e conservação da vida silvestre; e planejar o uso sustentado da terra na região. Leia mais em https://www.facebook.com/guardioeschapada/ e https://www.instagram.com/guardioesdachapada/).
Mais recentemente, foi concebido um novo projeto relacionado à pandemia, o “Bioacústica em tempos de coronavírus, que pretende analisar os sons da cidade nesse período de isolamento social. Saiba mais em http://fonotropica.ufba.br/.
Fonte: Agenda Arte e Cultura (UFBA) – Claudiane Carvalho