O uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras e o descarte de toxicantes – como metais-traço em baixas concentrações – no solo e ar, além de rios e lagos, são apontados como alguns dos fatores responsáveis pela diminuição das populações e o desaparecimento de espécies de abelhas observado atualmente em diferentes partes do mundo.
Os reais efeitos dessas substâncias químicas nos insetos, contudo, ainda não estão muito bem esclarecidos, uma vez que estudos realizados nos últimos anos no Brasil e em outros países para diagnosticar se a exposição de abelhas a concentrações variáveis de determinados tipos de agrotóxicos alterava a taxa de mortalidade e sobrevivência, além do comportamento e órgãos internos do animal – como o cerébro –, não identificaram mudanças significativas.
“Às vezes, não é porque não se observam alterações na taxa de mortalidade e no comportamento, além de em órgãos internos específicos que podem ser impactados por um determinado agrotóxico, que o produto não está causando efeitos em abelhas”, disse Fábio Camargo Abdalla, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), à Agência FAPESP.
O pesquisador e o estudante Caio Eduardo da Costa Domingues – que realiza mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Monitoramento Ambiental na UFSCar de Sorocaba com Bolsa da FAPESP – identificaram que abelhas do gênero Bombus – conhecidas popularmente como mamangavas ou mamangabas – possuem um sistema celular integrado capaz de “compensar” os efeitos dos toxicantes e, ao combatê-los, “mascarar” seus reais impactos até uma determinada concentração e tempo de exposição.
A descoberta – resultado da pesquisa “Ação do cádmio e do Roundup® original em órgãos internos de Bombus morio e Bombus atratus (Hymenoptera: Bombini), foi relatada em um artigo publicado na revista PloS One.
Os resultados serão apresentados no próximo congresso latino-americano da Sociedade de Toxicologia Ambiental e Química (Setec, na sigla em inglês), previsto para ocorrer entre os dias 7 e 10 de setembro, em Buenos Aires, na Argentina.
“Os efeitos da exposição das abelhas a um determinado xenobiótico (substâncias químicas sintéticas que não ocorrem naturalmente no ambiente, como agrotóxicos e metais-traço) podem ser compensados por esse sistema celular integrado, que chamamos de hepatonefrocítico”, afirmou Abdalla.
De acordo com o pesquisador, o sistema hepatonefrocítico que identificaram por microcospia nas abelhas mamangavas é composto por células que integram o chamado corpo gorduroso do inseto – que têm função homóloga ao do fígado, em humanos –, além de células pericárdicas e células do sistema imune (hemócitos) do animal.
Esse conjunto de células e tecidos está localizado e disposto, não por acaso, em camadas em uma região contrátil (miogênica) ao redor do vaso dorsal (o “coração) das abelhas – um tubo de fundo cego que se estende pelo abdômen e se abre no começo da cabeça do inseto – e funciona, de forma coordenada, como um filtro para o sangue (hemolinfa) das abelhas.
Quando as abelhas são expostas a xenobióticos, as células do corpo gorduroso são as primeiras a ser ativadas e representam a primeira barreira contra a agressão química.
Caso as células do corpo de gordura não consigam deter o “ataque” da substância química e forem atingidas ou destruídas, são convocadas as células pericárdicas.
Porém, a resposta celular imune acontece durante todo o processo de “combate”, revelado por meio da morfologia e da contagem de células do sangue durante todo o período de exposição ao agrotóxico e metais-traço.
As substâncias tóxicas neutralizadas pelas células pericárdicas são liberadas de volta para a hemolinfa e podem ser filtradas pelo túbulo de Malpighi – o órgão excretor do inseto. As células imunes das abelhas, por sua vez, participam durante todo o processo, explicou Abdalla.
“Essa associação de células, juntamente com o túbulo de Malpighi, funciona em abelhas de forma análoga aos rins e fígado dos humanos e representam a linha de frente dos insetos para compensar os efeitos deletérios causados pela exposição a substâncias químicas”, afirmou.
Possível biomarcador
A fim de avaliar qual o limite de compensação dos efeitos de toxicantes pelo sistema hepatonefrocítico das abelhas, os pesquisadores realizaram experimentos em que expuseram abelhas mamangavas a doses de cádmio consideradas seguras para águas de classe I e II pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), além de doses subletais de tiametoxan – o agrotóxico mais usado no Brasil – e glifosato por períodos variáveis.
Os resultados das análises de resposta celular dos insetos – realizada por meio da contagem de células do sistema hepatonefrocítico na hemolinfa – revelaram que a exposição durante dois dias a uma parte por bilhão (ppb) de cádmio, diluído em 2 mililitros (ml) de água, provocou a morte de células do corpo gorduroso e uma intensa atividade das células pericárdicas, levando o sistema a entrar em colapso e à destruição do vaso dorsal dos animais.
“Estamos observando que isso também ocorre com diferentes espécies de abelhas que não somente a Bombus morio, como também Bombus atratus, Apis mellifera e em Xylocopa suspecta, que divide o mesmo nicho com a Bombus, com a diferença de que é uma abelha solitária, e não social”, explicou.
“Por isso, esse sistema hepatonefrocítico pode ser usado como um biomarcador morfológico para analisar o nível de estresse ambiental em abelhas”, indicou.
O artigo “Hepato-nephrocitic system: a novel model of biomarkers for analysis of the ecology of stress in environmental biomonitoring”, de Abdalla e Domingues, pode ser lido na revista PLoS One em www.plosone.org/article/related/info:doi/10.1371/journal.pone.0132349.
Fonte: Agência Fapesp – Elton Alisson