Abelhas sem ferrão e microrganismos – Parte 1

Por Cristiano Menezes

Nutrição e Proteção

A estreita relação entre abelhas e os microrganismos é inquestionável. Como ocorre para muitos insetos, bactérias, fungos e leveduras parecem desempenhar um papel importante para a nutrição e a proteção das abelhas contra microrganismos prejudiciais. Os microrganismos são passados de uma geração de abelhas para a próxima, enquanto, associados com suas hospedeiras, eles encontram microambientes apropriados para viver e se reproduzir.

O tema deste artigo tem sido amplamente pesquisado com relação à Apis mellifera, da qual mais de 6 mil cepas microbianas foram isoladas e identificadas (Gilliam, 1997). No entanto, a biologia e as funções dos microrganismos associados às abelhas são ainda obscuros e por vezes controversos.

Mandaguari (Scaptotrigona depilis) - Crédito: Cristiano Menezes
Mandaguari (Scaptotrigona depilis) – Crédito: Cristiano Menezes

Apesar de as abelhas sem ferrão compartilharem muitas semelhanças com a Apis mellifera, este diferente e diverso grupo ainda esconde muitas particularidades que não foram exploradas. Aqui trataremos do papel dos microrganismos não patogênicos em colônias de abelhas sem ferrão e sua importância para a manutenção das abelhas.

Microrganismos conhecidos que residem em colônias de abelhas sem ferrão

Bactérias

Dois gêneros de bactérias foram identificados em colônias de abelhas sem ferrão. As mais comuns e sempre presentes são do gênero Bacillus. Estes microrganismos parecem desempenhar um papel importante na secreção de enzimas que causam a fermentação e a conversão dos componentes do pólen. Aparentemente, as enzimas têm duas funções principais: a pré-digestão do pólen (amolecendo a parede da exina) antes de ser ingerido e a alteração do pólen armazenado de modo que seja menos suscetível à proliferação de microrganismos prejudiciais. As fermentações acéticas e lácticas, que ocorrem no pólen e no mel, também são realizadas por estas bactérias.

 

pólen Mandaguari (Scaptotrigona depilis)
Pólen da abelha sem ferrão Mandaguari ( Scaptotrigona depilis ). Antes da fermentação, as bolotas de pólen ainda estão firmes e os grãos de pólen intactos (esquerda). Depois da fermentação,o pólen fica muito mais ácido e mais úmido.

Além da função aparente na digestão dos alimentos, Yoshiyama e Kimura (2009) encontraram fortes evidências de que espécies do gênero Bacillus também secretam antibióticos. Ao utilizá-las em ensaios de inibição in vitro, os autores demonstraram que as cepas de Bacillus do trato digestivo da Apis cerana japonica (abelha-do-mel-japonesa) inibe a Paenibacillus larvae, que causa a American foulbrood disease (cria pútrida americana).

Um estudo clássico sobre a biologia das abelhas sem ferrão indicou que a Melipona quadrifasciata não pode sobreviver sem uma espécie de Bacillus encontrada no ninho (Machado, 1971). O Bacillus foi encontrado no pólen armazenado, no aprovisionamento de crias, no trato digestivo de larvas e em abelhas adultas, e de forma menos abundante no mel. Durante um mês, a colônia de estudo foi alimentada com xarope de açúcar misturado com estreptomicina, um antibiótico que matou espécies de Bacillus in vitro. Após o tratamento, as novas células de crias foram continuamente destruídas, e a colônia morreu após 30 dias.

Outro gênero de bactérias encontrado recentemente nas células de cria e materiais de ninho de colônias de abelhas sem ferrão é o Streptomyces actinomycete (Promnuan et al., 2009). Este gênero é bem conhecido por secretar antibióticos e aqueles encontrados nas abelhas sem ferrão Trigona laeviceps e T. fuscobalteata apresentaram alta atividade inibitória contra a Paenibacillus larvae e Melisococcus Plutonius, patógenos da A. mellifera, responsáveis pela cria pútrida americana e cria pútrida europeia, respectivamente.

Recentes contribuições demonstraram claramente o potencial das relações entre as abelhas e Streptomyces e sugerem que este tipo de relacionamento também pode ser encontrado em abelhas sem ferrão. Kaltenpoth et al. (2006) e Goettler et al. (2007) encontraram uma relação simbiótica entre uma vespa (Philanthus triangulum) e as bactérias do gênero Streptomyces que vivem nas glândulas antenais de vespas fêmeas. As bactérias são transmitidas dentro de células da cria antes do aprovisionamento larval e secretam nove substâncias antibióticas diferentes que protegem as larvas de fungos e outros patógenos (Kroiss et al. 2010). Sem as bactérias, as larvas da vespa não conseguem sobreviver.

 

Leveduras

Dez gêneros de levedura são conhecidos em colônias de abelhas sem ferrão. Os mais representativos são a Candida e a Starmerella, que ocorrem com muita frequência em pólen e em mel. Outros gêneros foram encontrados em abelhas adultas, própolis, em área de depósito de lixo da colônia e, raramente, em mel. Porém, como esses outros gêneros são geralmente encontrados em partes do ninho associadas com materiais externos, como própolis, pode-se supor que são contaminantes ocasionais de ambiente externo e plantas visitadas por abelhas (Lachance et al, 2001a, b; Rosa et al. 2003).

A importância das leveduras e os seus papéis potenciais para colônias de meliponíneos é semelhante às funções bacterianas; ou seja, elas secretam enzimas que convertem substâncias de alimentos armazenados e ajudam a preservá-los. A fermentação alcóolica também é um processo iniciado com a levedura. Ainda não está claro como as leveduras influenciam a nutrição das abelhas, mas as mudanças observadas no pólen armazenado são impressionantes.

Um papel interessante das leveduras foi descrito por Camargo et al., (1992). Leveduras do gênero Candida parecem desidratar o pólen armazenado pela abelha sem ferrão Ptilotrigona lurida. Este processo de desidratação é eficiente para evitar a deterioração e prevenir que os forídeos (Phoridae, Pseudohypocera) consumam pólen e causem sérios danos para a colônia dessa espécie de abelha.

Outros Fungos

Um estudo recente descreveu forrageiras de Tetragonula collina colhendo esporos de Rhizopus sp. no lugar de pólen (Eltz et al., 2002). O mesmo comportamento também foi observado em abelhas Partamona. Observações semelhantes foram também percebidas por Roubik (1989), Burr et al. (1996) e Oliveira e Morato (2000). Eles descobriram que as operárias de abelhas sem ferrão lambem ou colhem uma massa mucilaginosa de cogumelos véu-de-noiva  (Fungi, Phallales).

Ainda não se sabe o que motiva este comportamento. O valor nutritivo dos esporos é baixo se comparados ao do pólen, mas podem complementar sua dieta se a disponibilidade for alta e a colheita for relativamente fácil. De fato, tricomas vegetais (às vezes chamadas de pseudopólen) são colhidos de orquídeas Neotropicais por abelhas sem ferrão Partamona, Plebeia, Melipona e Trigona, e podem ter um papel semelhante (Davies, 2009).

Outro documento recente relata a ocorrência de vários fungos filamentosos isolados de abelhas operárias da Melipona subnitida (Ferraz et al., 2008). Estas abelhas já estavam mortas de causas naturais quando foram coletadas, e a maioria dos microrganismos deve ser oportunista ao explorar as carcaças.

Recentemente, foi descoberto um relacionamento interessante entre um fungo e as abelhas. Um fungo filamentoso do gênero Monascus cresce dentro das células da cria da Scaptotrigona depilis na superfície do alimento das larvas e é comido pela larva em desenvolvimento.  A princípio, foi considerada uma doença, porque a cria da colônia estudada apresentava uma taxa de mortalidade alta. Contudo, recentes observações demonstraram que este fungo é muito abundante em colônias saudáveis de S. depilis e também ocorre com outras espécies de abelhas sem ferrão, tais como a Tetragona clavipes e a Melipona flavolineata. O fungo prolifera antes do ovo eclodir e cresce intensivamente até a larva alcançar três dias de idade. As larvas comem o fungo conforme ele cresce e testes experimentais mostram que as larvas dependem deste fungo para sobreviver, porque todas morreram quando o crescimento do fungo foi inibido experimentalmente. No momento, estamos investigando se o fungo está fornecendo benefícios nutricionais ou proteção contra microrganismos indesejados.

Os microrganismos, de uma forma geral, parecem ser fundamentais para a vida das abelhas sem ferrão, mas ainda não conhecemos quase nada sobre eles. O estudo dessas relações com as abelhas ainda gerará muitas descobertas inéditas e com grande possibilidade de aplicação. Podem ajudar a manter as colônias mais saudáveis e produtivas e ainda encontrar novas fontes de substâncias interessantes para o homem, como antibióticos e conservantes.

Crédito: Cristiano Menezes

fermentação mel - Crédito: Cristiano Menezes

 

Pote de mel da abelha Tíuba ou Uruçú-Cinzenta (Melipona fasciculata), à esquerda. O mel contém leveduras e bactérias que causam fermentação e alteram as características do mel. É possível observar os gases liberados por esse processo de fermentação. Crédito: Cristiano Menezes

Cristiano Menezes é biólogo e entomólogo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental.