Informação científica ao alcance das mãos dos cidadãos

Muitas vezes, quando pensamos em ciência, em pesquisa científica, parece ser enorme a distância entre o que se produz de conhecimento nas universidades e sua aplicação em políticas e ações públicas e privadas que beneficiem a sociedade.

Mas será que esse percurso é tão longo assim? Ou melhor, será que, com a revolução que a tecnologia provocou na nossa forma de se comunicar e de consumir informação, o acesso à informação científica não ficou literalmente ao alcance das nossas mãos? Agora imagine o potencial dessa ferramenta como fonte para promover, por exemplo, ações coletivas para a conservação da natureza!

Há mais de duas décadas, o Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA) atua no desenvolvimento de ferramentas de armazenamento e gestão de informações sobre a biodiversidade brasileira.

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Com o objetivo de tornar o conhecimento científico acessível para toda a sociedade, o CRIA busca integrar e dar visibilidade a dados de coleções biológicas espalhadas pelo Brasil e informações sobre nossas fauna e flora que estão armazenadas em instituições pelo mundo.

Para a Diretora de Projetos do CRIA, Dora Canhos, a “ciência aberta” é indispensável para o desenvolvimento sustentável. “Uma sociedade sustentável precisa de informação, e o acesso ao conhecimento científico é essencial para melhorar nossos processos de pesquisa, de educação e de tomadas de decisão e buscar caminhos para a conservação e uso sustentável da nossa riqueza ambiental”.

Redes colaborativas

Na prática, a chave para viabilizar os projetos é estabelecer redes de colaboradores e parceiros.

Com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por exemplo, o CRIA desenvolveu sistemas como o Sinbiota (Sistema de Informação Ambiental do Programa Biota/Fapesp) e a revista Biota Neotropica. Também com a Fapesp, teve início em 2001 o desenvolvimento daquele que hoje é um dos maiores sistemas de informação sobre a biodiversidade brasileira: a rede speciesLink, um grande banco de dados colaborativo no qual qualquer interessado pode fazer consultas e obter dados sobre a flora, a fauna e a microbiota do País. Para se ter uma ideia, com novas ferramentas tecnológicas implantadas pelo CRIA em 2021, o uso dos dados do speciesLink, que apresentava uma média de 680 milhões de registros por ano, em outubro de 2022 já superou 71 bilhões.

Abelhas – e outros polinizadores – na rede

Cria infoabelhaOutra dessas parcerias de sucesso é com a associação A.B.E.L.H.A., e resultou em alguns projetos que são muito importantes. Dois deles deram origem ao InfoA.B.E.L.H.A.: o Sistema de Informação Científica sobre Abelhas Neotropicais e o Sistema de Informação sobre Interações Abelhas – Plantas no Brasil.

”O apoio da A.B.E.L.H.A. tem sido decisivo para a organização e o compartilhamento aberto de dados de ocorrência de abelhas e outros polinizadores por meio da plataforma InfoA.B.E.L.H.A., que permite a busca pelo nome científico ou comum das abelhas brasileiras. A base primária de informação é o Catálogo de Abelhas Moure, um trabalho que resgatou e atualizou os dados coletados pelo Padre Jesus Santiago Moure sobre as espécies de abelhas neotropicais. Além dos dados do Catálogo Moure, o infoA.B.E.L.H.A. apresenta os dados e imagens da rede speciesLink, publicações científicas do Portal brasileiro oasisbr entre vários outros. Trata-se de mais um exemplo importante da ciência aberta e do trabalho em rede”, enfatiza Dora.

O Catálogo Moure, obra de referência para pesquisadores e estudantes, é a espinha dorsal do sistema e a porta de entrada para a busca por espécies, seja com o nome comum ou científico. Com isso, é possível integrar dados e ampliar o uso da informação para outros públicos, além da comunidade científica e especializada (apicultores e meliponicultores, agricultores, professores e estudantes, entre outros).

Você sabia?

Originalmente publicado como um trabalho impresso sob o título Catálogo das Abelhas (Hymenoptera, Apoidea) na Região Neotropical (Moure et al. 2007), o Catálogo Moure foi publicado em versão online de acesso aberto com três edições subsequentes (Moure et al. 2008, 2012, 2022), todas coordenadas pelo Prof. Gabriel A. R. Melo, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná. Este catálogo tornou-se a principal referência em diversidade de abelhas dos Neotrópicos. Sua publicação facilitou o acesso à documentação de 264 anos de pesquisa taxonômica e o exame conjunto de mais de 5 mil nomes de espécies de abelhas. Trata-se de uma grande contribuição para o avanço da pesquisa sobre insetos polinizadores.

Padre Jesus Santiago Moure

Em 1925, então com 12 anos de idade, o Padre Moure foi estudar no Seminário Claretiano, em Curitiba, de onde, em 1929, seguiu para o Seminário Maior Claretiano, em Rio Claro. No período de 1929 a 1932, obteve sua formação superior em Filosofia, Ciências Naturais, Física e Matemática.

Foi nessa época que ocorreu sua primeira aproximação com as ciências naturais, em particular a Botânica. Conta com orgulho da monografia de História Natural por ele realizada sobre a flora encontrada na área do Seminário Claretiano em Rio Claro, Pugillus Plantarum Rioclarensium. Nesta época também, em companhia do colega de seminário Francisco Pereira, o Padre Pereira dos escarabeídeos, aproveitava os poucos momentos de folga para coletar insetos.

Nesta fase aprendeu latim, grego, francês, espanhol e hebraico, o que lhe foi muito útil na vida científica, possibilitando ler as descrições das espécies feitas pelos autores antigos do século XIX e ter completa desenvoltura para propor nomes para suas abelhas. Mesmo um rápido exame dos nomes científicos por ele propostos revela sua predileção pelo grego, o que resultou em muitos nomes que à primeira vista parecem impronunciáveis, como por exemplo Ariphanarthra, Alepidosceles, Colocynthophila, Compsoclepta, Ctenosibyne e Pachyceble.

No período que se encontrava em São Paulo, em 1937, entrou em contato com entomólogos do Museu Paulista, em particular Frederico Lane. A partir de auxílios como tradutor de textos entomológicos em latim, aproximou-se da taxonomia de insetos. Sua primeira publicação, em colaboração com Lane, apareceu em 1938. Publicou mais dois trabalhos com Lane, em 1938 e 1940. Estes três artigos representam sua brevíssima incursão pela taxonomia dos besouros.

De volta a Curitiba, passa a lecionar no Seminário Claretiano em 1938, tornando-se também naquele ano professor fundador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Curitiba, que mais tarde seria integrada à Universidade do Paraná, federalizada em 1950. Logo se associou ao Museu Paranaense, uma instituição mantida pelo governo do Estado do Paraná, assumindo a Diretoria da Divisão de Zoologia em 1939 e, posteriormente, como Diretor do Museu entre 1952 e 1954.

A produtiva carreira como sistemata de abelhas começou também nessa época. O estímulo inicial veio do próprio Lane, que reconhecia a importância da coleção de abelhas do Museu Paulista, então abandonada desde a saída de Curt Schrottky, no início do século. Em 1940, o Padre Moure publica seu primeiro trabalho com abelhas, intitulado Apoidea Neotropica, o primeiro de uma série de três artigos tratando principalmente de halictíneos. Esses trabalhos iniciais já revelam as características que marcam sua atuação como sistemata: seu olho clínico para detalhes morfológicos, permitindo separar facilmente grupos que até então tinham recebido apenas definições vagas pelos autores prévios, e sua atenção para mensurações e proporções. Além de várias novas espécies, alguns gêneros novos são também propostos, como Habralictus, Paroxystoglossa e Thectochlora. Aqui também é fácil reconhecer sua marca registrada-a adoção de conceitos restritos para os grupos tratados como gêneros em abelhas-uma abordagem incompreendida por muitos melitólogos que ainda o consideram um splitter.

Além de atuar como professor e cientista, o Padre Moure mantinha também uma intensa vida como sacerdote. Muitos de seus colegas do mundo científico aproveitaram-se desta duplicidade da vida do Padre Moure. Já que seu colega era padre, porque não ter o casamento consagrado por ele?! O Padre Moure se tornou um casamenteiro bastante requisitado. Celebrou o casamento de Prof. Ronaldo Zucchi, Prof. Lionel Gonçalves, Prof. João Camargo, entre muitos outros.

Colaboradores

Em 1948, ainda no início de sua carreira, o Padre Moure já tinha publicado 25 trabalhos, a grande maioria deles sem envolver co-autoria com outros pesquisadores. A partir de 1950, estabelece fortes colaborações com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, nesse período inicial em particular com Warwick Estevam Kerr e Paulo Nogueira Neto.

Um de seus grandes amigos e também colaborador é o Prof. Charles Michener, da Universidade de Kansas. O primeiro contato entre eles ocorreu quando Michener preparava sua revisão sobre as abelhas do Panamá, publicada em 1954. Pouco familiarizado com a complexa fauna neotropical, Michener recorreu ao Padre Moure, que nesta época já possuía uma ampla visão sobre a sistemática de abelhas de toda a região Neotropical. A vinda do Prof. Michener e sua família ao Brasil, que permaneceram em Curitiba de junho de 1955 a julho de 1956, permitiu que a colaboração entre eles se concretizasse na forma de importantes revisões de grupos neotropicais de abelhas, como as tribos Eucerini, Exomalopsini e Tapinotaspidini, publicadas entre 1955 e 1957.

O Padre Moure manteve também extensa colaboração com Paul Hurd, com quem realizou uma extensa revisão mundial de todos os subgêneros de Xylocopa, publicada em 1963, e mais tarde um catálogo completo para os halictíneos do Novo Mundo, publicado em 1987.

Entre seus colaboradores mais recentes devemos destacar dois de seus ex-alunos: a Profa. Danúncia Urban e o Prof. João Camargo, que fizeram carreira brilhante na sistemática das abelhas. O mundo dos Eucerini e Anthidiini da América do Sul foi todo desvendado graças aos esforços da Profa. Danúncia; e para os meliponíneos, não há quem desconheça o talento e os trabalhos maravilhosos do Prof. Camargo.

Pioneirismo

O Padre Moure participou da fundação da SBPC, CNPq e Capes, ou seja simplesmente dos principais órgãos relacionados à pesquisa e ciência do país até hoje. Relembra com entusiasmo de sua viagem a Campinas, SP, em companhia de Metry Bacila e Marcos Enrietti, para participar da fundação da SBPC em 1948. Não deixa de fora o detalhe que nesta época a estrada que ligava Jundiaí a Campinas era de terra!

Ele lutou muito para instalar a pós-graduação no Brasil, pois sabia que isso nos destacaria entre os países emergentes. De certa forma, pode-se dizer que o Padre Moure e seus contemporâneos semearam a pesquisa no Brasil. Se hoje temos uma comunidade cientifica organizada e respeitada internacionalmente, com órgãos de fomento nacionais e estaduais fortes, cursos de pós graduação em todo território nacional, devemos este feito à geração do Padre Moure. Eles foram corajosos, persistentes e sabiam que isso garantiria um futuro melhor para o Brasil. Sabiam que o País tinha potencial e capacidade para produzir conhecimento e se tornar aos poucos independente tecnologicamente.

Além disso, o Padre Moure participou da formação da Sociedade Brasileira de Entomologia, em 1937, e da Sociedade Brasileira de Zoologia, em 1978. Hoje, estas sociedades possuem, juntas, mais de 900 sócios ativos. O Padre Moure participou ativamente da criação de um dos primeiros cursos de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, o de Entomologia, implantado em 1969. Este programa é altamente conceituado na Capes e, até junho de 2006, havia formado 414 mestres e doutores, sendo que destes, 35 mestres e 12 doutores obtiveram seus títulos sob a orientação do Padre Moure.

Adaptado de Melo, G. A. R. & Alves-dos-Santos, I. 2003. Moure 90 anos: uma trajetória em imagens. In G. A. R. Melo & I. Alves-dos-Santos (eds.), Apoidea Neotropica: Homenagem aos 90 Anos de Jesus Santiago Moure. Editora Unesc, Criciúma. pp. 3-10.

Fonte: http://moure.cria.org.br/moure_bio.

Vale destacar também que um dos projetos de pesquisa viabilizados pela Chamada Pública Polinizadores CNPq/MCTIC/IBAMA/Associação ABELHA Nº 32/2017 integrou dados de outros acervos nacionais e do exterior à rede speciesLink, e ampliou o escopo geográfico para outros países da América do Sul. A ampliação de informações sobre a distribuição das espécies é particularmente importante para conhecer e promover estudos dos biomas brasileiros bem como dar subsídios para o desenvolvimento de ações de restauração e conservação de todos os biomas, independentemente de sua distribuição por estados da federação. Como um dos resultados da chamada pública, o Catálogo de Abelhas Moure foi atualizado este ano, e apresenta como unidade de ocorrência de espécies além dos Estados, o município.

O InfoA.B.E.L.H.A. integra dados de 12 fontes de informação:
  • Catálogo de Abelhas Moure
  • Imagens da Coleção Entomológica “Prof. J.M.F. Camargo”, da USP, Ribeirão Preto
  • Fototeca do Cristiano Menezes
  • Rede speciesLink
  • Sistema Interação Abelha-Planta
  • Imagens do Museu Nacional de História Natural de Paris – Coleção de Hymenoptera
  • Bioline International: artigos, principalmente de países do hemisfério sul (incluindo o Brasil)
  • Portal Brasileiro de publicações científicas em acesso aberto – oasisbr
  • BHL – Biodiversity Heritage Library
  • Directory of Open Access Journal
  • Encyclopedia of Life
  • Flickr

A Chamada Pública permitiu desenvolver e tornar público o sistema Lacunas de Conhecimento das Abelhas do Brasil, que tem por objetivo evidenciar a ausência de informações taxonômicas, geográficas e temporais sobre as espécies por meio da análise dos dados das coleções biológicas que integram a rede speciesLink. O sistema apresenta o status dos dados online para todas as espécies válidas citadas no Catálogo de Abelhas Moure. Também compara a ocorrência das espécies por Estado no Catálogo Moure com os dados da rede speciesLink.

Saiba mais sobre taxonomia e sua importância na identificação de espécies.

Serviços ecossistêmicos e conservação

Com esses e muitos outros dados disponíveis abertamente, fica clara a contribuição dos sistemas para facilitar a pesquisa científica sobre a biodiversidade brasileira. O Sistema de Abelhas Neotropicais, por exemplo, recebeu 16.300 visitantes únicos no ano passado.

Agora acompanhe esta lista:

  • recomposição de áreas naturais degradadas,
  • uso racional de água e do solo,
  • adoção de boas práticas apícolas e agrícolas,
  • conservação de polinizadores em seu hábitat de origem,
  • criação de corredores ecológicos,
  • serviços ecossistêmicos de polinização em áreas de cultivo agrícola,
  • convivência harmônica entre agricultura, apicultura e meliponicultura,
  • mitigação dos efeitos de atividades econômicas no meio ambiente.

Flora brasiliensis siteTodas essas ações – e muitas outras – dependem de pessoas para serem colocadas em prática, profissionais de todas as áreas, públicas e privadas, que têm na ciência a base para estabelecer políticas de promoção de desenvolvimento sustentável. E a todos nós os dados estão disponíveis para consulta, para cruzamento de informações, para a educação e a disseminação de conhecimento.

Para Dora, já está claro que a conservação ambiental requer a participação de todos nós, de todos os atores da sociedade. “É por meio da educação, do acesso público ao conhecimento científico que alcançamos a conscientização que leva à ação. Acreditamos que nosso trabalho possa incentivar o uso eficiente e responsável de recursos naturais e a mitigação de impactos no meio ambiente. Conhecer a biodiversidade brasileira é o melhor caminho para poder conservá-la”.

Saiba mais sobre algumas das ferramentas de acesso a dados sobre polinizadores desenvolvidas pelo CRIA e que receberam o apoio da A.B.E.L.H.A.:

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