Cientistas descobrem que abelhas sem ferrão usam guardas especializadas para defender as colmeias

Em consequência dos ataques praticados por abelhas ladras, a abelha nativa sem ferrão jataí (Tetragonisca angustula) e outras nove espécies sofreram um processo evolutivo diferenciado, no qual parte dos indivíduos, denominadas de guardas ou soldados, desenvolve características físicas distintas, sendo mais robustas e de maior porte, para defender as colmeias.

Esse desenho na divisão do trabalho da jatai, a abelha mais criada no Brasil, e as diferenças morfológicas (físicas) entre os indivíduos de uma mesma colônia foram descobertas por um grupo de pesquisadores que reúne a Embrapa Amazônia Oriental, em Belém (PA), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Johannes Gutenberg de Mainz (Alemanha).

Essa descoberta foi publicada hoje em artigo na revista Nature Communications, publicação científica entre as mais conceituadas do mundo.

Biologia das abelhas sem ferrão

Ao longo de quatro anos o estudo realizado em cooperação entre os cientistas conseguiu identificar também outras nove espécies que produzem uma classe especial de soldados ou abelhas guardas, para defender seus ninhos.

Cristiano Menezes, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, avalia que essa descoberta é mais um degrau na conquista do conhecimento necessário para desenvolver a tecnologia de utilização das abelhas nativas sem ferrão na polinização comercial agrícola no País. Ele comenta que as abelhas são as principais polinizadoras do mundo e que cerca de 70% das culturas agrícolas mundiais são polinizadas ou beneficiadas em algum grau pela polinização. “Algumas culturas são 100% dependentes de abelhas como o maracujá, por exemplo, que se não tiver a polinização a produção de frutos é zero”, afirma.

Além de ser uma história interessante do ponto de vista evolutivo desses insetos, a descoberta tem uma importância para compreender melhor a biologia geral das abelhas sem ferrão e ajudar no aprimoramento das técnicas de manejo das colônias, defende Cristiano. Ele argumenta que esse grupo de abelhas é importante para a produção de mel e derivados, como pólen, própolis, entre outros e são essenciais para a produção de alimentos por causa do serviço de polinização que prestam aos cultivos agrícolas. “Para manejá-las de forma eficiente e produtiva, precisamos conhecer muito bem a biologia do grupo”, afirma.

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Lestrimelitta sp. Crédito: Cristiano Menezes

Ainda de acordo com o cientista, em muitos países, esses insetos são utilizados na polinização agrícola em escala comercial, o que no Brasil é praticamente inexistente, restrito apenas aos plantios de maçã e melão. Por ser um serviço essencial à produção de muitos alimentos, estima-se que, no Brasil, o impacto do serviço de polinização é em torno de US$ 12 bilhões por ano e que a indisponibilidade de colônias para compra ou aluguel é um dos obstáculos para a adoção dessa prática, potencialmente lucrativa, no País.

Abelhas guardas

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Lestrimelitta sp. no ataque a uma guarda de jataí. Crédito: Cristiano Menezes

As abelhas ladras são tão especializadas em saquear as colmeias que muitas delas nem possuem mais a estrutura das pernas utilizada para transportar o pólen, conforme identificaram os pesquisadores. De acordo com Cristiano Menezes esses insetos roubam tudo, do alimento aos materiais de construção, além de matarem as crias das outras abelhas. A morfologia dessas ladras, ou seja, sua forma física, foi adaptada para lutar. São verdadeiros “tanques de guerra”, explica o cientista, enfatizando que são muito fortes e possuem cabeças e garras avantajadas, utilizadas para triturar e até decapitar as vítimas de saque.

Essa ação predatória das ladras, que se especializou ao longo de séculos, também provocou pressão evolutiva em algumas espécies de abelhas sem ferrão. A pesquisa mostrou que a genealogia das guardas evoluiu, na mesma época em que as ladras, para se defenderem dos saques, gerando um grupo especial entre as abelhas operárias e redesenhando assim a divisão de trabalho.

Revelou ainda que as guardas distinguem-se das forrageiras (que são abelhas que buscam alimento) em tamanho e até na cor. Estes soldados são entre 10% e 30% maior do que as operárias da mesma colônia, explicou o biológo Christoph Grüter, da Universidade de Mainz, um dos colaboradores da pesquisa. “Conseguimos vincular claramente a atividade das abelhas com a evolução desses soldados”, esclareceu Grüter.

Segundo as análise, essa pressão evolutiva, responsável pela diferenciação entre abelhas de uma mesma colônia, ocorreu pelo menos cinco vezes nos últimos 25 milhões de anos, sempre ao lado da diversificação e da especialização das abelhas parasitas.

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Moça-branca guarda, à esquerda, ao lado de uma forrageira da mesma espécie. Crédito: Cristiano Menezes

Os estudos conduzidos na Embrapa Amazônia Oriental (PA) estabeleceram entre os destaques duas espécies, que há anos são pesquisadas no Pará: a Frieseomelitta longipes, conhecida popularmente como marmelada; e a Frieseomelitta flavicornis, chamada popularmente de moça-branca. Também nesses casos as guardas são maiores, morfologicamente diferentes e mais escuras que as demais operárias da colônia.

Manejo dos meliponários

Conhecer melhor os mecanismos naturais de defesa das abelhas sem ferrão frente às ladras pode ajudar no aprimoramento das técnicas de manejo dos meliponários para evitar os saques e até total destruição das colmeias.

O cientista Cristiano Menezes exemplifica que a partir desse conhecimento já é possível nos dias de hoje fazer recomendações sobre as espécies mais resistentes aos ataques, como a moça-branca, por exemplo, para o planejamento do desenho dos meliponários. “As moças-branças devem ser colocadas nas extremidades ou áreas periféricas do meliponário, protegendo as abelhas mais sensíveis e frágeis aos ataques, que devem ser dispostas nas áreas centrais”, orientou.

Outra recomendação importante a partir dessa descoberta para fins da criação comercial e uso na polinização é que as espécies com guardas especializadas, como a jataí, precisam ser dispostas em cavaletes individuais, distantes umas das outras para não ocorrer conflitos entre as vizinhas.

“As guardas possuem uma grande capacidade de reconhecer quem é e quem não é da sua colônia. Se alguma abelha tentar entrar na colônia errada, ocorrerá uma briga fatal entre elas”, alerta. Já as espécies que não possuem guardas especializadas, como a uruçu-amarela, que são apreciadas pela quantidade e qualidade do mel que produzem, podem ser criadas uma ao lado da outra, pois as guardas são mais tolerantes às operárias vizinhas e não brigam. “Esse é um ótimo exemplo para mostrar como a pesquisa básica pode interagir com a pesquisa aplicada para melhorar o sistema de produção e manejo de espécies da nossa fauna e flora”, enfatiza do pesquisador.

Guardas mandaguari defendendo a colmeia Credito Christoph Grüter
Guardas de mandaguari defendendo a colmeia. Crédito: Christoph Grüter

O estudo Repeated evolution of soldier sub-castes suggests parasitism drives social complexity in stingless bees, em ingles, está disponível no site da Nature Communications.

Fonte: Nature Communications e Embrapa